PODER CONSTITUINTE: CONCEITO
O poder constituinte, de acordo com as principais correntes doutrinárias, é o poder responsável pela criação e modificação das normas constitucionais, exercido por meio do processo de elaboração e/ou reforma da Constituição, com o objetivo de conferir legitimidade ao ordenamento jurídico do Estado.
Dentro deste quadro, é importante distinguir entre o poder constituinte e os poderes constituídos. O poder constituinte está relacionado à Ciência Política e se caracteriza por sua natureza política, sendo transitório e intermitente, enquanto os poderes constituídos são tratados no âmbito do Direito Constitucional, com uma natureza jurídica que os torna permanentes e contínuos, e são responsáveis pela administração, legislação e jurisdição.
TEORIZAÇÃO
A teoria do poder constituinte encontra um de seus marcos na obra Que é o Terceiro Estado? (Qu’est-ce que le Tiers État?), de Emmanuel Joseph Sieyès, que se constituiu como um manifesto das reivindicações da burguesia contra o absolutismo, com o propósito de limitar e legitimar o poder político estatal. No contexto da obra, o ato de convocação de julho de 1788 autorizou a população francesa a apresentar propostas para a reforma do Estado, resultando em cerca de 40 mil cahiers de doleances (livros de queixas), entre os quais se destacam os quatro escritos de Sieyès. Dentre eles, o último – Qu’est-ce que le Tiers État? – foi redigido entre novembro e dezembro de 1788 e publicado no início de 1789.
Nesse trabalho, Sieyès criticou a composição dos Estados Gerais, afirmando que ela não refletia de forma justa a representação da nação, uma vez que o direito de voto era exercido por ordem, favorecendo a nobreza e o clero em detrimento da classe trabalhadora. O autor sugeriu que a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte restauraria a legitimidade do poder político, ao ser promulgada pelos representantes da nação, baseando-se nos direitos de propriedade (voto censitário) e igualdade perante a lei (voto unitário), com a intenção de atender aos interesses do Terceiro Estado.
Assim, a legitimidade do governo deveria ser proporcional à expressão dos interesses do Terceiro Estado, o qual, segundo Sieyès, era composto por uma classe “economicamente usurpada, politicamente desprivilegiada e socialmente oprimida”. Por isso, ele conclui que uma nova ordem jurídica poderia ser estabelecida pelo poder constituinte, representado pela Assembleia Nacional Constituinte.
NATUREZA
A natureza do poder constituinte não é unanimemente definida na doutrina.
A primeira corrente, essencialmente jusnaturalista, adotada por autores como Emmanuel Joseph Sieyès e Georges Burdeau, assim como Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Luiz Pinto Ferreira, sustenta que a natureza do poder constituinte é a de um poder jurídico, cuja análise se atém à sua legitimidade, entendendo-o como legitimado por seu titular, com base no Direito Natural.
Por outro lado, a corrente juspositivista, defendida por Carl Schmitt e Carré de Malberg, bem como por Celso Ribeiro Bastos e Raul Machado Horta, considera que a natureza do poder constituinte é de um poder de fato, cuja análise se desvincula da questão da legitimidade, sendo um poder que se legitima por si mesmo, além das normas do Direito Positivo.
Já a terceira corrente, com a qual concordamos, proposta por Paulo Bonavides e José Horácio Meirelles Teixeira, afirma que a natureza do poder constituinte é política. Nesse sentido, o poder constituinte deve ser examinado tanto como uma categoria jurídica, que se refere à sua origem, dado que precede o processo de criação das normas constitucionais, quanto como uma categoria fática, que se relaciona aos efeitos produzidos, pois ele estabelece o fundamento de validade da ordem jurídica do Estado. O estudo dessa natureza deve ser feito com a opção por uma neutralidade axiológica, ou não, dependendo da abordagem adotada pelo intérprete.
TITULARIDADE E EXERCÍCIO
A doutrina, em consonância com o artigo 1º, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil, distingue entre titularidade e exercício do poder constituinte.
A titularidade refere-se ao sujeito que detém a decisão sobre o poder constituinte, sendo atribuída à nação ou ao povo. Já o exercício do poder constituinte diz respeito a quem realiza o ato de execução desse poder, sendo ele exercido de forma direta, indireta ou mista.
Portanto, a distinção entre titularidade e exercício diz respeito à técnica de legitimação do poder constituinte, pois a elaboração e/ou reforma da Constituição será validada na medida em que estiver de acordo com o consentimento dos titulares, que são os responsáveis por autorizar o exercício desse poder.
Titularidade
Quanto à titularidade do poder constituinte, essa questão está intimamente ligada à titularidade da soberania. O poder constituinte é considerado a expressão máxima do poder político, responsável pela criação e/ou modificação da estrutura fundamental do Estado e da sociedade. A Ciência Política identificou três teorias principais sobre a titularidade da soberania.
A teoria da soberania divina postula que o poder político emana de Deus, podendo ser subdividida em soberania divina sobrenatural, quando o agente é investido diretamente por intervenção divina, e soberania divina providencial, quando o agente é escolhido por meio de eventos conduzidos pelo próprio titular do poder político.
A teoria da soberania nacional defende que o poder político pertence à nação, entendida como uma entidade abstrata, distinta das pessoas que a compõem. Nessa teoria, ainda se distingue entre soberania nacional alienável e soberania nacional inalienável, dependendo da transferência do poder político entre o titular e o agente.
Já a teoria da soberania popular afirma que o poder político é atribuído aos cidadãos, enquanto membros ativos da vida política do Estado. Na soberania nacional, o poder é totalmente conferido à nação como um todo (uti universi), enquanto na soberania popular ele é delegado parcialmente a cada membro do povo (uti singuli).
A doutrina, em contraposição à visão de Emmanuel Joseph Sieyès, que definia o titular do poder constituinte como a nação, ressalta que a titularidade do poder constituinte recai sobre o povo. Em diversos momentos da história constitucional brasileira, as Constituições refletiram diferentes teorias: as de 1824 e 1891 adotaram a teoria da soberania nacional, enquanto as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988 adotaram a teoria da soberania popular, sendo que a titularidade do poder constituinte é atribuída ao povo conforme a Constituição em vigor.
Exercício
O exercício do poder constituinte é analisado sob a ótica dos órgãos e dos procedimentos constituintes.
Quanto aos órgãos, distingue-se entre o exercício direto, indireto e misto do poder constituinte. No exercício direto, o poder é desempenhado diretamente pelo povo, como ocorre em momentos de aclamação popular em revoluções. No exercício indireto, o poder é exercido por representantes do povo, podendo ser realizado por um único agente (sistema monocrático) ou por um conjunto de representantes (sistema policrático), como nas Assembleias Constituinte ou Convenções Nacionais. O exercício misto envolve a atuação conjunta do povo e seus representantes, como ocorre em plebiscitos ou referendos, com a promulgação ou outorga da Constituição.
Em relação ao procedimento, o exercício do poder constituinte se divide em quatro fases: preparatória, introdutória, constitutiva e complementar. Na fase preparatória, é tomada a decisão sobre a necessidade de elaborar ou reformar a Constituição. Na fase introdutória, ocorre o ato convocatório para a formação do órgão constituinte, que pode ou não ser ratificado por um órgão regular de representação. Na fase constitutiva, a atividade constituinte se manifesta por meio de revolução, assembleia constituinte, convenção nacional, plebiscito ou referendo. Finalmente, na fase complementar, o produto do exercício do poder constituinte se materializa com a promulgação ou outorga da nova Constituição.
Classificação
Segundo a teoria de Nelson de Souza Sampaio, o poder constituinte pode ser classificado com base em dois critérios: objeto e produto. No primeiro, o objetivo do exercício do poder constituinte é a criação ou alteração das normas constitucionais, enquanto, no segundo, o foco está no efeito gerado pela atividade constituinte, ou seja, na criação da Constituição da República ou de um Estado. Dessa forma, o poder constituinte é dividido em quatro categorias: (i) poder constituinte originário, (ii) poder constituinte derivado reformador, (iii) poder constituinte derivado institucionalizador estadual e (iv) poder constituinte derivado de reforma estadual.
O poder constituinte originário refere-se à criação da Constituição da República, sendo exemplificado pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte. Já o poder constituinte derivado reformador refere-se à capacidade de modificar a Constituição da República, como disposto no artigo 60 da Constituição Federal e no artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). As Emendas à Constituição, aprovadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, são fruto desse tipo de poder.
O poder constituinte derivado institucionalizador estadual diz respeito à criação das Constituições dos Estados, como o exemplo da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, promulgada pela Assembleia Legislativa do estado, investida em poderes constituintes. Por fim, o poder constituinte derivado decorrente de reforma estadual trata da modificação da Constituição estadual, com base nos artigos 111 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e 35 do ADCT/RJ. As Emendas à Constituição do Estado do Rio de Janeiro, aprovadas pela Assembleia Legislativa, são exemplos desse poder.
Poder Constituinte Originário
O poder constituinte originário é o poder responsável pela criação da Constituição da República, sendo caracterizado por três aspectos principais: inicialidade, ilimitação e incondicionamento.
A inicialidade do poder constituinte originário indica que este poder inicia um novo ordenamento jurídico, sendo responsável pela elaboração das normas constitucionais que servirão de fundamento para a validade das demais normas do sistema jurídico. A Constituição que emerge desse processo marca o início da produção do Direito Positivo.
A ilimitação do poder constituinte originário significa que esse poder não está sujeito a restrições estabelecidas pelo Direito Positivo, ou seja, ele não encontra limites nas normas pré-existentes do ordenamento jurídico. Dessa forma, a Constituição originária é capaz de revogar ou modificar qualquer norma anterior, sem estar limitada por elas.
Por fim, o incondicionamento do poder constituinte originário reflete o fato de que não há imposições quanto às formas e procedimentos para a sua exteriorização, ou seja, a Constituição originária pode ser estabelecida por meios e formas não previstos nas normas pré-existentes.
Inicialidade do Poder Constituinte Originário
A inicialidade do poder constituinte originário levanta duas questões relevantes: a primeira refere-se ao efeito da sua manifestação sobre a Constituição anterior, e a segunda diz respeito ao impacto sobre a legislação infraconstitucional pré-existente.
Efeito sobre a Constituição Anterior
O exercício do poder constituinte originário revoga integralmente as normas contidas na Constituição anterior, independentemente de haver compatibilidade material entre as normas anteriores e as da nova Constituição. A nova Constituição regula de forma completa as matérias que estavam sob a égide da Constituição revogada, não permitindo a coexistência de normas constitucionais antigas com as novas. Nesse sentido, José de Oliveira Ascenção afirma que a revogação promovida pela nova Constituição é “global”, não permitindo que normas da Constituição anterior permaneçam em vigor, mesmo que materialmente compatíveis com as novas disposições.
Entretanto, a teoria da desconstitucionalização, embora adotada em Portugal e não no Brasil, propõe que normas que não tratam da estrutura fundamental do Estado, mas que possuem caráter formal constitucional, possam ser “desencapsuladas” da Constituição revogada e passadas a ter status de normas legais ordinárias. Isso significa que, embora a nova Constituição revogue as normas materialmente constitucionais da anterior, as normas com caráter apenas formal poderiam continuar em vigor, sendo tratadas como leis ordinárias.
Efeito sobre a Legislação Anterior
Em relação à legislação infraconstitucional, o exercício do poder constituinte originário pode resultar na recepção das normas infraconstitucionais que sejam materialmente compatíveis com a nova Constituição. A recepção implica que essas normas não são revogadas, mas passam a ter validade com base na nova ordem constitucional. Norberto Bobbio explica que a recepção ocorre quando normas de um ordenamento jurídico são incorporadas a um novo ordenamento, mas com um novo fundamento de validade.
A recepção suscita várias questões importantes. Em primeiro lugar, se uma norma constitucional altera a forma ou a competência para a produção legislativa, é possível que normas infraconstitucionais anteriores, que eram compatíveis com a Constituição anterior, sejam “recebidas” pela nova Constituição, mas agora com uma nova eficácia. Por exemplo, uma lei ordinária que se tornaria parte do rol das leis complementares, se a Constituição posterior modificou a competência legislativa para tratar de determinadas matérias. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), as normas infraconstitucionais podem ser recebidas, mas a aplicação do critério “tempus regit actum” (o tempo rege o ato) deve ser observada.
A Não Recepção de Normas Infraconstitucionais
No que se refere à incompatibilidade entre uma norma infraconstitucional e a Constituição superveniente, existem três abordagens doutrinárias distintas. A primeira, advinda das doutrinas alemã e espanhola, defende que a norma infraconstitucional incompatível com a Constituição posterior deve ser revogada, sendo resolvida no campo da vigência. A segunda corrente, das doutrinas italiana e portuguesa, afirma que a norma infraconstitucional em desacordo com a Constituição nova deve ser considerada inconstitucional. A terceira corrente, defendida por alguns juristas brasileiros, considera que a norma infraconstitucional incompatível é revogada por inconstitucionalidade, sendo este um efeito combinado de revogação e inconstitucionalidade.
A jurisprudência do STF, em consonância com o entendimento de que as normas infraconstitucionais não recebidas pela nova Constituição são revogadas, reforça a ideia de que uma norma infraconstitucional não pode ser considerada em vigor se for incompatível com a nova Constituição, pois a norma infraconstitucional é revogada pela Constituição superior.
Conceitos Afins: Recepção e Institutos Semelhantes
Por fim, é importante distinguir o conceito de recepção de outros institutos relacionados, como a repristinação, o efeito repristinatório e a filtragem constitucional. A repristinação ocorre quando a revogação de uma norma é revertida por uma nova disposição legislativa. O efeito repristinatório se refere à restauração da vigência de uma norma revogada, quando a norma revogadora é declarada inconstitucional. Já a filtragem constitucional é um processo em que todas as normas infraconstitucionais, sob a ótica da Constituição vigente, são reavaliadas à luz dos valores e princípios constitucionais, sendo adaptadas ou atualizadas conforme necessário.
Ilimitação
No que tange à ilimitação, dois pontos de destaque merecem atenção. O primeiro refere-se à colisão entre normas constitucionais originárias, que não comportam o reconhecimento de inconstitucionalidade, uma vez que tal fenômeno só se aplica a normas originadas pelo poder constituinte derivado. O segundo aborda a possível colisão entre normas constitucionais e normas internacionais, especialmente no que diz respeito à proteção internacional dos direitos humanos.
Conflito entre normas constitucionais
A antinomia entre normas originárias é distinta da antinomia que surge entre normas constitucionais originárias e derivadas. No primeiro caso, o conflito é resolvido por meio da hermenêutica constitucional, enquanto o segundo é tratado no âmbito do controle de constitucionalidade, sendo, por isso, abordado em momento posterior.
A colisão entre normas constitucionais originárias, considerando que a antinomia pode ser classificada como aparente ou real, é resolvida com base em critérios hermenêuticos, como os da especialização, hierarquia e temporalidade. O raciocínio parte do princípio de que as normas produzidas pelo poder constituinte originário não possuem uma hierarquia normativa formal, pois todas emanam da mesma fonte do direito constitucional. Contudo, essas normas podem exibir uma hierarquia axiológica, dado que são fundamentadas em diferentes valores no processo de aplicação dos princípios constitucionais.
A Constituição pode ser entendida como um sistema que é, por um lado, internamente estático, já que suas normas podem ser princípios ou regras, sendo estes últimos mais concretos, enquanto aqueles têm maior abstração e exigem concretização. Por outro lado, a Constituição é dinâmica externamente, pois serve de fundamento para todas as normas jurídicas do ordenamento constitucional, sendo resultado da autoridade do poder constituinte originário.
Assim, os conflitos entre normas constitucionais originárias são resolvidos por três critérios interpretativos, que visam à harmonização das normas conflitantes, de modo a garantir sua máxima efetividade dentro do contexto específico.
No caso de confronto entre princípios constitucionais, a colisão não é considerada uma antinomia técnica, sendo solucionada através do critério de ponderação dos valores envolvidos. Nessa situação, prevalece o princípio de maior peso no caso concreto. Um exemplo clássico é o conflito entre o direito à liberdade de expressão (art. 5º, IX, da CRFB) e o direito à inviolabilidade da intimidade (art. 5º, X, da CRFB). Em decisões jurisprudenciais, como as do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, aplica-se a ponderação, restringindo o direito à liberdade de expressão em favor da proteção à intimidade, a menos que se trate de um fato de interesse público.
Quando o conflito envolve princípios e regras constitucionais, a antinomia é aparente e é resolvida com base no critério hierárquico, considerando a diferença de natureza entre os dois tipos de normas, com a prevalência dos princípios sobre as regras. Um exemplo disso ocorre no confronto entre o princípio da igualdade dos credores da Fazenda Pública (art. 100 da CRFB) e a regra transitória do art. 33 do ADCT, que estabelece um prazo de pagamento para créditos pendentes. A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, com base no critério hierárquico, tem decidido pela prevalência do art. 100 da CRFB, considerando-o superior à regra transitória do ADCT.
Por fim, em caso de colisão entre regras constitucionais, que é uma antinomia real, o conflito não pode ser resolvido por critérios interpretativos, sendo necessária a criação de uma nova norma para solucionar a oposição. Um exemplo disso é o confronto entre as regras do art. 61, §1º, II, d, e o art. 128, §5º, ambos da CRFB, que tratam da competência para a elaboração de normas sobre a organização do Ministério Público. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem resolvido esse conflito determinando que a Lei Orgânica do Ministério Público da União e as Leis Orgânicas dos Ministérios Públicos dos Estados devem ser elaboradas por meio de leis complementares, com a iniciativa de sua elaboração distribuída entre o Presidente da República, o Procurador-Geral da República e os Procuradores-Gerais dos Estados.
Conflito entre normas constitucionais e internacionais
O status normativo dos tratados e convenções internacionais, especialmente no campo da proteção dos direitos humanos, continua sendo objeto de discussão doutrinária. A controvérsia se concentra na compatibilidade entre as normas constitucionais e as normas internacionais, com destaque para as situações em que há colisão entre essas ordens jurídicas, como exemplificado pelo confronto entre o art. 5º, LXVII, da CRFB e o art. 7º, nº 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
Diversos autores se posicionam sobre a hierarquia dessas normas. Maurício Andreiuolo Rodrigues e Laerte José Castro Sampaio sustentam que os tratados internacionais não possuem legitimidade para se sobrepor às normas constitucionais, mesmo quando versam sobre direitos humanos. Para eles, apesar de o §2º do art. 5º da CRFB permitir a recepção de tratados internacionais de direitos humanos, isso não implica subordinação das normas constitucionais a esses tratados. A Constituição, para esses autores, mantém a supremacia das suas disposições, sem a possibilidade de que os tratados internacionais sobre direitos humanos se sobreponham a qualquer outra norma de nível constitucional.
Por outro lado, Gilmar Ferreira Mendes adota uma visão diferente, defendendo que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm status supralegal. Para ele, embora tais tratados sejam, em regra, normas infraconstitucionais, possuem uma qualidade especial em relação a outros atos internacionais, garantindo-lhes uma espécie de supralegalidade. Assim, caso exista um conflito entre uma norma infraconstitucional e um tratado de direitos humanos, a norma infraconstitucional deverá ser considerada inaplicável.
No entanto, Flávia Cristina Piovesan e Antônio Augusto Cançado Trindade defendem que, desde a promulgação da Constituição de 1988, os tratados internacionais de direitos humanos gozam de status constitucional, conforme disposto no art. 5º, §2º. Para esses doutrinadores, os tratados internacionais sobre direitos humanos, ao serem ratificados pelo Brasil, devem ser interpretados e aplicados como se fossem normas constitucionais, superando as normas infraconstitucionais que lhes sejam conflitantes. Essa visão assegura a aplicabilidade direta e primazia das normas internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo em face de normas infraconstitucionais que possam ser contrárias a elas.
Celso de Albuquerque Mello, por sua vez, propõe uma teoria do status supraconstitucional, na qual os tratados e convenções internacionais de direitos humanos prevalecem sobre normas constitucionais, mesmo que essas normas sejam posteriores ao tratado internacional em questão. Para ele, a interação entre o direito interno e o direito internacional deve ser realizada em benefício da proteção dos direitos humanos, e, nesse contexto, os tratados internacionais possuem um grau de superioridade que justifica sua primazia, até mesmo em relação à Constituição.
Ao meu ver, as normas de Direito Internacional, especialmente aquelas que envolvem a proteção dos direitos humanos, devem prevalecer sobre a legislação interna, uma vez que, por meio do processo legislativo de incorporação ao ordenamento jurídico nacional, tais normas recebem, no mínimo, o status de supralegalidade. A supralegalidade dos acordos internacionais sobre direitos humanos foi reconhecida, por exemplo, pela Cour de Cassation francesa, que, ao interpretar o art. 55 da Constituição francesa, afirmou que “os tratados ou acordos regularmente ratificados e aprovados têm uma autoridade superior à das leis, mesmo as posteriores”. Essa interpretação foi também sustentada pela Hoge Raad der Nederlanden ao interpretar o art. 94 da Constituição neerlandesa, que declara que, em caso de conflito entre a Constituição e um tratado, este deve ser aprovado pelas Câmaras dos Estados Gerais com uma votação de dois terços, destacando a força normativa dos tratados internacionais.
No Brasil, após a Reforma do Poder Judiciário promovida pela Emenda Constitucional nº 45/04, o Supremo Tribunal Federal também passou a adotar a visão de que as convenções e tratados internacionais de direitos humanos possuem status normativo supralegal. O STF decidiu que, nesse contexto, qualquer legislação infraconstitucional que contrarie esses tratados é inaplicável. Esse entendimento foi confirmado em relação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao afirmar que a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica, sem reservas, implicou na impossibilidade de prisão civil por dívida do depositário infiel, em conformidade com os direitos humanos estabelecidos no tratado internacional. Assim, desde a ratificação da convenção, não há mais base legal para a prisão por dívida do depositário infiel, independentemente da modalidade do depósito, reconhecendo-se a prevalência do tratado sobre as normas infraconstitucionais conflitantes.
Incondicionamento
O conceito de incondicionamento levanta duas questões principais: (i) a que diz respeito às formas de exteriorização do poder constituinte originário e (ii) a que trata dos meios pelos quais esse poder se manifesta na elaboração das normas constitucionais, com ênfase nas práticas adotadas em diferentes contextos jurídicos ao redor do mundo.
Formas de expressão
O poder constituinte originário, durante a fase constitutiva do processo de elaboração das normas constitucionais, pode se manifestar por meio de revolução, assembleia ou convenção constituinte, plebiscito ou referendo.
Na revolução, a expressão do poder constituinte originário ocorre por intermédio de um comando revolucionário, podendo ou não envolver a edição de um ato provisório. A revolução, dentro de uma concepção sociológica, é vista como uma forma de contestação da ordem social, onde se distinguem três fenômenos: a marginalidade, que não visa à conquista do poder político (exemplo: movimentos como os hippies); a contestação em sentido estrito, que busca o poder político por meio de meios desproporcionais (exemplo: grupos mafiosos); e a revolução propriamente dita, que tenta conquistar o poder político utilizando meios proporcionais. Sob a ótica jurídica, a revolução é um movimento social que tem implicações diretas na ordem jurídica, e se distingue do golpe de estado. Enquanto a revolução é respaldada por um consenso popular, refletindo um processo de ruptura da legalidade, o golpe de estado ocorre em desacordo com a visão predominante da sociedade sobre o exercício do poder, configurando uma violação tanto da legalidade quanto da legitimidade.
No caso da assembleia ou convenção constituinte, o poder constituinte originário é exercido por representantes eleitos. Essa modalidade pode ou não envolver um projeto governamental, com a distinção entre assembleias ou convenções constituintes “puras” e “congressuais”. Em uma assembleia ou convenção pura, os representantes são eleitos exclusivamente para a função constituinte originária, sem outras atribuições, com um mandato indeterminado. Já na assembleia ou convenção constituinte congressual, os representantes possuem tanto a função constituinte originária quanto a legislativa ordinária, com mandato determinado. Marco Aparicio Wilhelmi analisa a história do “velho constitucionalismo europeu-continental”, em que países como Espanha, França e Itália adotaram modelos de assembleias ou convenções constituintes congressuais com procedimento específico e duração indefinida.
Em relação ao plebiscito ou referendo, a aceitação da norma constitucional depende de uma consulta popular, que pode ocorrer antes ou depois da elaboração da norma. As práticas de democracia semidireta são separadas pelo critério temporal: no plebiscito, a consulta ocorre antes da elaboração da norma constitucional, e o povo deve aprová-la ou rejeitá-la; no referendo, a consulta acontece após a criação da norma, e a população decide sobre sua ratificação ou rejeição. O “novo constitucionalismo latino-americano”, conforme apontado por Rubén Martínez Dalmau, é exemplificado pela Constituição do Equador, que, assim como outras constituições latino-americanas, submeteu o texto constitucional à consulta popular.
As formas de expressão do poder constituinte originário não são rígidas, podendo ser combinadas com novas tecnologias de informação e comunicação. Um exemplo recente é o processo de elaboração colaborativa da constituição da Islândia. Em 2008, após manifestações populares, foi criado um conselho constitucional, o Stjórnlagaráð, que, em 2011, utilizou as redes sociais para divulgar o anteprojeto da nova constituição e coletar sugestões da população. Essa constituição participativa foi, em 2012, ratificada por 66,9% dos cidadãos islandeses.
Meios de expressão
Na fase complementar do processo de elaboração das normas constitucionais, o poder constituinte originário pode se manifestar por meio de um procedimento autocrático ou democrático.
No meio autocrático, a exteriorização do poder constituinte originário ocorre sem a participação direta dos cidadãos, caracterizando a Constituição como uma outorga, ou seja, uma declaração unilateral do agente detentor do poder constituinte originário. Exemplos históricos de constituições outorgadas no Brasil incluem a de 1824, a de 1937 e a de 1967.
Por outro lado, no meio democrático, a expressão do poder constituinte originário envolve a participação ativa dos cidadãos, de forma que a Constituição é estabelecida por meio da promulgação, isto é, por meio de uma deliberação majoritária dos agentes do poder constituinte originário. Exemplos de constituições promulgadas no Brasil são as de 1891, 1934, 1946 e 1988.
Poder constituinte derivado reformador
O poder constituinte derivado reformador da Constituição da República é definido por três características principais: derivação, limitação e condicionamento.
Derivação
A derivação implica que o poder constituinte reformador se fundamenta na própria Constituição da República, uma vez que a modificação das normas constitucionais está prevista no artigo 60, caput, e §§ 2º, 3º e 5º da Constituição, bem como no artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Caso contrário, a reforma pode ser considerada formal ou materialmente inconstitucional.
Quanto à questão da admissibilidade de normas constitucionais inconstitucionais, a doutrina apresenta posições divergentes, com quatro correntes principais sobre o tema.
Klaus Stern defende a inadmissibilidade da inconstitucionalidade material das normas constitucionais, independentemente do poder constituinte de onde essas normas emanem.
Hans-Uwe Erichsen, por sua vez, admite a inconstitucionalidade material das normas constitucionais quando resultantes do poder constituinte derivado, especialmente quando estas contrariem limitações impostas à reforma da Constituição. Assim, caso haja conflito entre uma norma constitucional originária que limite o poder de reforma e uma norma constitucional derivada que a viole, a última seria considerada materialmente inconstitucional.
Herbert Krüger também sustenta a possibilidade de inconstitucionalidade material, mesmo quando a norma for proveniente do poder constituinte originário. Para ele, quando uma norma constitucional violar normas superiores, ainda que formalmente constitucional, ela será considerada inconstitucional.
Otto Bachof argumenta que normas constitucionais originárias podem ser materialmente inconstitucionais quando violarem princípios suprapositivos, ou seja, normas jurídicas que têm caráter anterior à Constituição e que são vinculativas até para o próprio poder constituinte. Como exemplo, cita a dignidade da pessoa humana, que é considerada um princípio pré-constitucional e que deve prevalecer sobre normas constitucionais que a contrariem.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconheceu a existência de um direito suprapositivo, vinculando inclusive o próprio constituinte. Segundo a corte, uma norma constitucional pode ser declarada nula se violar de maneira insuportável os princípios fundamentais da justiça que são subjacentes às decisões fundamentais da Constituição.
Em contraste, o Tribunal Constitucional de Portugal negou a possibilidade de normas constitucionais originárias serem inconstitucionais, decidindo, por exemplo, que a proibição do lock-out prevista no artigo 57, nº 2, da Constituição Portuguesa não poderia ser considerada inconstitucional.
No Brasil, a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) vinculam a inconstitucionalidade das normas constitucionais àquelas que emanam do poder constituinte derivado reformador e que violam as limitações impostas à reforma constitucional. A tese de que existe hierarquia entre as normas constitucionais originárias, levando à declaração de inconstitucionalidade de algumas em face de outras, é considerada incompatível com o sistema de Constituição rígida. O STF, em sua função de guarda da Constituição, não se encarrega de fiscalizar se o poder constituinte originário violou princípios suprapositivos, mas sim de garantir a integridade da Constituição como um todo.
Ademais, o STF já se pronunciou sobre a inconstitucionalidade de diversos dispositivos de emendas constitucionais. Entre os exemplos, destacam-se a declaração de inconstitucionalidade de artigos da Emenda Constitucional nº 3/93, que tratava da cobrança de impostos sobre a movimentação financeira; da Emenda Constitucional nº 10/96, que tratava da contribuição social sobre o lucro líquido; da Emenda Constitucional nº 19/98, que dispensava o regime jurídico único para servidores públicos; da Emenda Constitucional nº 21/99, que autorizava a União a emitir títulos da dívida pública interna para custeio da saúde e previdência social; e da Emenda Constitucional nº 45/04, que permitia a escolha intempestiva dos membros do Conselho Nacional do Ministério Público da União, entre outros. O STF também declarou a inconstitucionalidade de artigos das Emendas Constitucionais nº 30/00, nº 41/03, nº 52/06, nº 58/09, nº 62/09 e nº 88/15, que tratavam de questões como a reaprovação de ministros do STF, a contribuição previdenciária de servidores públicos inativos, a retroação de efeitos de novas regras eleitorais, e a permissão de tratamento discriminatório entre servidores da União e dos Estados.
Limitação
A limitação do poder constituinte derivado reformador refere-se à sujeição deste poder às restrições estabelecidas no artigo 60, §§ 1º e 4º da Constituição da República. Essas limitações podem ser classificadas em três tipos: temporais, circunstanciais e materiais.
As limitações temporais envolvem a impossibilidade de se realizar reformas constitucionais durante determinados períodos de tempo. A Constituição da República não impõe restrições temporais, ao contrário da Constituição do Império, que, em seu artigo 174, proibiu a reforma constitucional nos quatro anos seguintes à sua promulgação.
As limitações circunstanciais referem-se a condições excepcionais que impedem a reforma constitucional. Conforme o artigo 60, § 1º da Constituição de 1988, a reforma não pode ser realizada durante a vigência de intervenção federal, estado de sítio ou estado de defesa, ou seja, em momentos de crise institucional.
As limitações materiais, ou cláusulas pétreas, restringem a modificação de certos aspectos fundamentais da Constituição. A emenda ou revisão não pode alterar os princípios essenciais que constituem o “cerne imodificável” da Constituição, abrangendo tanto proibições expressas quanto implícitas. As limitações explícitas estão previstas no artigo 60, § 4º, da CRFB, que impede modificações sobre a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Por outro lado, as limitações materiais implícitas são aquelas que decorrem do sistema constitucional como um todo. Embora não estejam diretamente expressas em normas, elas emergem da titularidade do poder constituinte — tanto originário quanto derivado — e do procedimento de reforma constitucional. Por exemplo, a emenda não pode violar os princípios consagrados nos artigos 1º, parágrafo único, e 60, caput, §§ 2º e 3º, da CRFB, que tratam da soberania popular e da forma de reforma constitucional.
Além disso, é possível identificar duas limitações materiais implícitas adicionais. A primeira diz respeito à não modificação das cláusulas pétreas explícitas, como o princípio da separação dos Poderes e dos direitos fundamentais, com o intuito de evitar a aplicação da teoria da dupla reforma no sistema jurídico brasileiro. A segunda limitação material implícita está relacionada à forma de governo, uma vez que não é mais possível substituir o regime republicano pelo monárquico ou o presidencialismo pelo parlamentarismo, em razão do plebiscito de 21 de abril de 1993, conforme os artigos 1º, caput, e 76 da CRFB, além do artigo 2º do ADCT.
Em relação à invocação de direito adquirido, a doutrina e a jurisprudência concordam quanto à impossibilidade de invocar direitos adquiridos contra normas constitucionais originárias. Isso ocorre porque o poder constituinte originário não está sujeito a limitações jurídicas, salvo as exceções expressamente previstas no texto constitucional. Entretanto, a questão sobre a invocação de direito adquirido frente a normas constitucionais derivadas gera duas correntes principais de pensamento.
A primeira corrente, defendida por renomados doutrinadores como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, José Afonso da Silva, Carlos Mário da Silva Velloso, entre outros, argumenta que é possível invocar direito adquirido em face de emenda ou revisão constitucional. Para esses autores, o poder constituinte derivado está sujeito a limites impostos pela própria Constituição, não podendo revogar direitos adquiridos. A reforma constitucional, portanto, não poderia violar direitos adquiridos, pois tais direitos são garantidos pela Constituição e devem ser respeitados pelo legislador derivado. Uma nova Constituição, por sua vez, pode alterar essa situação, pois ela representa uma ruptura com a ordem jurídica anterior.
A segunda corrente, defendida por doutrinadores como Celso Ribeiro Bastos, José Pinto Ferreira, José Celso de Mello Filho e outros, defende a ideia de que não se pode invocar direito adquirido contra emenda ou revisão constitucional, pois a garantia constitucional do direito adquirido é destinada exclusivamente ao legislador ordinário. Para esses autores, a reforma constitucional pode, sim, revogar direitos adquiridos, visto que tem efeito revogatório imediato e completo, sendo superior às normas infraconstitucionais.
Apesar dessas divergências, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, antes de 1988, seguia a linha de que não era possível alegar direito adquirido contra normas constitucionais. A interpretação era de que as normas constitucionais têm eficácia imediata, e o direito adquirido não seria oponível contra a Constituição, inclusive em face das emendas. Assim, enquanto as leis ordinárias não podem prejudicar direitos adquiridos, a reforma constitucional poderia ter tal efeito.
Contudo, no atual ordenamento constitucional, o STF tem se posicionado de maneira a admitir a alegação de direito adquirido em face de normas constitucionais derivadas, com base no entendimento de que a emenda e revisão não podem violar direitos adquiridos, conforme o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da CRFB. Em sua jurisprudência mais recente, o Supremo tem reconhecido a aplicabilidade da proteção ao direito adquirido também nas reformas constitucionais, desde que respeitados os limites materiais estabelecidos pelas cláusulas pétreas.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, mantém a posição de que não se pode invocar direito adquirido contra normas constitucionais derivadas, considerando que a garantia do direito adquirido se refere apenas à lei ordinária, e não à Constituição.
Condicionamento
O conceito de condicionamento refere-se ao fato de que o poder constituinte derivado reformador está sujeito à manifestação formal por meio de emenda ou revisão, com base na distinção entre os processos formais e informais de modificação da Constituição.
Nos processos formais de alteração constitucional, ocorre a modificação direta do texto constitucional por meio dos procedimentos estabelecidos para emenda ou revisão, ambos sob o termo genérico de reforma constitucional. A diferença entre emenda e revisão está principalmente na abrangência material e no formato do processo. A revisão, em termos materiais, possui um alcance mais amplo, podendo alterar o texto da Constituição de forma geral, exceto nas limitações materiais, explícitas e implícitas, ao poder de reforma. Já a emenda é mais restrita, aplicando-se apenas a questões específicas. Formalmente, a revisão exige o voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em uma única sessão, enquanto a emenda necessita do voto de três quintos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em dois turnos de discussão e votação, em sessões separadas, conforme o artigo 60, § 2º da CRFB e o artigo 3º do ADCT. Vale ressaltar que a única norma jurídica que estabeleceu a distinção entre revisão e emenda foi a Constituição de 1934, em seu artigo 178, caput.
Nos processos informais de mudança constitucional, o contexto da norma é alterado sem modificação do texto original, configurando o que se denomina mutação constitucional. A mutação ocorre quando, mantendo-se o texto da Constituição, a interpretação ou a prática jurídica conferem a ele novos significados, em razão de mudanças na percepção do Direito ou de transformações sociais e políticas. Essa alteração é possível por meio de interpretações administrativas ou judiciais, da atuação legislativa e dos costumes, com o objetivo de superar a dicotomia entre a normatividade e a realidade fática imposta pelo positivismo jurídico. A interpretação constitucional, nesse caso, como ferramenta de mutação, resulta na alteração do sentido, alcance e conteúdo da norma, muitas vezes em desacordo com o entendimento prévio. No entanto, a mutação constitucional não deve ser confundida com a interpretação construtiva, que visa ampliar a Constituição para abranger novas situações não previstas inicialmente, nem com a interpretação evolutiva, que adapta a Constituição a contextos não contemplados quando foi originalmente redigida, mas que se encaixam nas possibilidades semânticas do texto.
Uma questão polêmica no âmbito da reforma constitucional refere-se à validade de emendas que busquem convocar uma nova revisão constitucional. Duas correntes doutrinárias se destacam sobre o tema. A primeira, defendida por autores como Carlos Ayres Britto, Josaphat Marinho, Frederico Augusto D’Avila Riani e Eduardo Ribeiro Moreira, sustenta a impossibilidade de convocar uma nova revisão, pois tal emenda violaria a limitação material implícita relacionada ao procedimento de reforma constitucional, permitindo mudanças apenas por meio de emendas. Já Manoel Gonçalves Ferreira Filho defende a possibilidade de uma nova revisão constitucional, argumentando que a emenda convocatória não encontra impedimento jurídico, e que seria possível modificar a Constituição por meio de emenda ou revisão.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, alinhada com a posição majoritária na doutrina, adota a interpretação de que a “revisão constitucional deve ser feita uma só vez”. O STF, ao analisar a emenda nº 1.763, que propunha a inclusão da expressão “uma só vez” no artigo 3º do ADCT, concluiu que essa limitação já estava claramente estabelecida, dispensando qualquer adição explícita no texto constitucional. A decisão reafirma a posição de que uma revisão não pode ser seguida de outra por meio de emenda convocatória.
Poder constituinte derivado decorrente institucionalizador
O poder de criação da Constituição do Estado é caracterizado por três aspectos principais: derivação, limitação e condicionamento.
Derivação
O termo derivação refere-se ao fato de que a Constituição da República estabelece o procedimento para a elaboração da Constituição Estadual, definindo o órgão responsável, os processos apropriados e as normas que devem ser observadas para sua formulação. Embora o poder de criação da entidade federativa seja dotado de uma característica de “principialidade” — refletindo a competência para elaborar a primeira norma do ordenamento constitucional estadual, o chamado “poder constituinte quase originário” — tal poder é exercido dentro dos limites impostos pela Constituição Federal, especificamente no âmbito do artigo 25 da CRFB e do artigo 11 do ADCT. O órgão responsável por elaborar a Constituição Estadual é a Assembleia Legislativa, com os membros eleitos para o mandato no momento em que a atividade constituinte é realizada. O processo de criação da Constituição Estadual exige a maioria absoluta dos membros da Assembleia, e deve ser concluído em no máximo um ano. A Constituição Estadual, como norma prescritiva, regula a organização do Estado e o seu funcionamento, enquanto matérias de menor relevância podem ser tratadas por normas infraconstitucionais.
No que diz respeito a esse processo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência ressaltam a possibilidade de inconstitucionalidade material das normas constitucionais estaduais, quando estas contrariarem as limitações impostas ao poder de criação do Estado. Assim, quando uma norma estadual conflita com uma norma nacional que impõe restrições ao poder de instituição estadual, ocorre a inconstitucionalidade material da norma estadual, conforme o disposto no artigo 25 da CRFB.
Em termos doutrinários, Oswaldo Trigueiro destaca que, teoricamente, os Estados têm a autonomia para definir sua própria organização, desde que respeitados os princípios fundamentais do direito federal. Dessa forma, os Estados estão subordinados à Constituição da República, mas não ao governo da União. O Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência, reforça que, embora não haja uma norma explícita na Constituição de 1988, o processo constituinte dos Estados deve observar os princípios básicos do modelo federal, dado que esses princípios são essenciais para a configuração do regime federal, ao qual as unidades federadas estão vinculadas.
A jurisprudência do STF tem invalidado normas estaduais que violam esses princípios. Por exemplo, a Corte declarou a inconstitucionalidade de vários artigos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que apresentavam conflitos com os preceitos da Constituição Federal. Entre os dispositivos declarados inconstitucionais estavam aqueles que tratavam da gratuidade de sepultamento para pessoas de baixa renda, da alienação de ações de sociedades de economia mista, e da transformação de férias e licenças de servidores públicos em pecúnia, entre outros. Além disso, normas que tratavam da organização administrativa, da distribuição de competências entre os poderes, e de regras específicas para a nomeação e julgamento de autoridades estaduais também foram objeto de declarações de inconstitucionalidade, uma vez que se mostraram incompatíveis com os princípios federais estabelecidos pela Constituição da República.
Limitação
A limitação refere-se às restrições impostas pela Constituição da República ao poder de criação das Constituições estaduais, as quais se dividem em três categorias: princípios constitucionais sensíveis ou enumerados, princípios estabelecidos ou organizatórios e princípios extensíveis.
Os princípios sensíveis são explicitamente definidos pela Constituição Federal, e têm como objetivo fundamental assegurar o equilíbrio do sistema federativo. Sua violação pode resultar na intervenção federal. Entre esses princípios estão: (i) a forma republicana, o sistema representativo e o regime democrático, (ii) os direitos humanos, (iii) a autonomia municipal e (iv) a obrigação de prestação de contas pela Administração Pública, conforme estipulado no art. 34, inciso VII da Constituição da República.
Os princípios estabelecidos são aqueles que, embora derivados da Constituição da República, limitam a liberdade dos Estados de se auto-organizarem. Estes se subdividem em três tipos: (i) limitações expressas, (ii) limitações implícitas e (iii) limitações decorrentes. As limitações expressas estão previstas em normas claras e específicas da Constituição Federal, impondo obrigações ou proibições aos Estados (por exemplo, a exigência de que as Constituições estaduais respeitem os princípios da administração pública, conforme art. 37, e a proibição de atos como os previstos no art. 19). As limitações implícitas decorrem de normas dispersas pela Constituição, com caráter tanto mandatório (como nos arts. 27 e 28) quanto vedatório (nos arts. 22 e 30). Já as limitações decorrentes referem-se a princípios globais da Constituição, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre os entes federativos.
Os princípios extensíveis referem-se a normas organizacionais da União que devem ser obrigatoriamente aplicadas pelos Estados. Um exemplo disso é o princípio que estabelece que o subsídio dos Desembargadores dos Tribunais de Justiça não pode ultrapassar 95% do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme o art. 93, inciso V.
Em relação a este tema, a doutrina e a jurisprudência alertam que o exercício do poder de criação estadual, limitado por esses princípios constitucionais, pode resultar em normas que apenas reproduzem ou imitam os preceitos da Constituição da República. A Constituição estadual pode criar normas que se assemelham àquelas previstas na Constituição Federal, sendo este fenômeno descrito como “norma de reprodução” ou “norma de imitação”.
Betina Treiger Grupenmacher, em sua doutrina, esclarece que é importante não confundir as normas de reprodução com as normas de imitação. As normas de reprodução resultam da obrigatoriedade de seguir disposições constitucionais superiores, enquanto as normas de imitação representam a adesão voluntária dos Estados às disposições da Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência, tem reforçado que, apesar de a Constituição de 1988 ter conferido maior autonomia aos Estados, ela ainda impõe restrições significativas. A Corte observa que, embora tenha ocorrido uma diminuição dos princípios sensíveis, outros princípios, como os extensíveis e os estabelecidos, continuam a representar limitações para a autonomia estadual. Em especial, a questão sobre a obrigatoriedade da reprodução ou imitação das normas constitucionais federais gerou debates sobre a extensão do poder da União em impor normas aos Estados. O STF tem se posicionado sobre a aplicação compulsória ou facultativa de certos preceitos constitucionais.
Por exemplo, a Corte decidiu que o art. 102, incisos I, b e c, da Constituição Federal, que trata da prerrogativa de foro, é uma norma de reprodução obrigatória pelas Constituições estaduais. Assim, os Estados podem conceder foro especial a determinadas autoridades, desde que haja simetria com as disposições federais. No entanto, a jurisprudência também declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, como o art. 161, inciso IV, d, nºs 2 e 3, que atribuía competência ao Tribunal de Justiça do Estado para processar e julgar diversas autoridades estaduais, o que foi considerado incompatível com a Constituição Federal.
Condicionamento
O condicionamento refere-se à exigência de que a Constituição Estadual seja promulgada pela respectiva Assembleia Legislativa dentro de um ano após a promulgação da Constituição da República, exercendo o poder constituinte derivado decorrente institucionalizador.
A doutrina observa que, com a promulgação da Constituição de 1988, todas as Constituições estaduais anteriores foram recepcionadas, ou seja, mantidas em vigor, desde que atendidos certos requisitos. Caso um Estado não tenha promulgado sua nova Constituição dentro do prazo de um ano, qualquer alteração em sua organização e funcionamento deveria ser feita por meio de reforma estadual. Em outras palavras, a Constituição estadual anterior, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988, permanecia válida até que fosse alterada por emendas, conforme o art. 11 do ADCT. Assim, a promulgação de uma nova Constituição estadual deveria ocorrer no prazo de um ano, sendo este o prazo máximo concedido para a adequação das normas estaduais à nova ordem constitucional. Caso isso não ocorresse, as modificações deveriam ser feitas dentro dos limites da Constituição estadual recepcionada.
Poder constituinte derivado decorrente de reforma estadual
O poder de reforma das Constituições estaduais se caracteriza por sua derivação, limitação e condicionamento.
Derivação
A derivação indica que o poder de reforma da Constituição estadual tem como base a própria Constituição do Estado, sendo que qualquer emenda às normas constitucionais estaduais deve estar de acordo com o que é disposto no art. 111 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro (CERJ) e no art. 35 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT/RJ). Caso contrário, a reforma pode ser considerada inconstitucional, seja de forma formal ou material.
Uma questão controversa que surge nesse contexto é a possibilidade de controle de constitucionalidade das emendas estaduais em relação à Constituição do Estado. Em consonância com a Procuradoria-Geral do Estado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem se posicionado pela inviabilidade de o próprio Tribunal avaliar a constitucionalidade de emendas estaduais, considerando que a jurisdição sobre a Constituição Estadual, no que se refere a controle de constitucionalidade, é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal (STF). A jurisprudência tem afirmado que a Constituição do Estado é um produto do poder constituinte derivado e, portanto, não há hierarquia normativa entre suas disposições e as da Constituição Federal. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem entendido que “o Tribunal de Justiça é absolutamente incompetente para apreciar e decidir representação de inconstitucionalidade da própria Constituição Estadual, o que só pode ser discutido em sede de ação direta de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal”. Em outras palavras, não é cabível declarar a inconstitucionalidade de um dispositivo da Constituição Estadual, a não ser diante de um texto superior, ou seja, a Constituição da República.
Limitação
A limitação refere-se ao fato de que o poder de reforma das Constituições estaduais está sujeito a restrições, conforme estabelecido pela própria Constituição do Estado, em analogia ao disposto no art. 60, §§ 1º e 4º da Constituição Federal. Ou seja, as emendas estaduais devem respeitar as limitações constitucionais, sejam elas explícitas ou implícitas.
A doutrina defende que, mesmo que a Constituição Estadual não preveja essas limitações, o poder constituinte derivado estadual está obrigado a seguir as restrições impostas pela Constituição da República, incluindo as limitações materiais. Isso implica que os limites, sejam eles explicitamente previstos ou decorrentes de princípios constitucionais, aplicam-se também ao poder de reforma estadual. Dessa forma, o poder constituinte derivado estadual está, de certa forma, vinculado a um conjunto de restrições que vai além do que é previsto nas normas da Constituição do Estado.
Condicionamento
O condicionamento se refere à exigência de que o poder constituinte de reforma estadual seja exercido por meio de um procedimento específico, detalhado na própria Constituição do Estado, de maneira análoga ao que estabelece o art. 60, caput, §§ 2º, 3º e 5º, da Constituição Federal. Assim, o processo de emenda constitucional estadual deve seguir um rito formal, com regras claras sobre como as propostas podem ser apresentadas e aprovadas.
A doutrina também reconhece que é possível submeter o poder constituinte de reforma estadual a um procedimento similar ao da Constituição Federal, desde que esse procedimento esteja claramente disposto na Constituição estadual. Diversos exemplos de Estados brasileiros demonstram essa prática, como nos artigos de várias Constituições estaduais que estabelecem que as emendas podem ser propostas pelo Governador, por um terço dos membros da Assembleia Legislativa ou pela metade das Câmaras Municipais. Após a apresentação da proposta, ela deve ser discutida e votada em dois turnos, e sua aprovação depende de uma maioria qualificada de três quintos dos votos em ambos os turnos. A emenda é então promulgada pela Mesa da Assembleia Legislativa, com um número de ordem, e a proposta rejeitada ou considerada prejudicada não pode ser novamente apresentada na mesma sessão legislativa. Contudo, é importante ressaltar que o conceito de “revisão” da Constituição estadual, como ocorre na Constituição Federal, não encontra respaldo no sistema jurídico estadual.
Conclusão
No campo da teoria constitucional mais recente, reconhece-se a existência do poder constituinte supranacional, entendido como uma forma autônoma que complementa as duas formas tradicionais de poder constituinte: o originário e o derivado. Este poder supranacional é caracterizado pela capacidade de reorganizar os Estados que aderem a sistemas jurídicos supranacionais, como no caso da União Europeia, através de tratados constitutivos que visam legitimar o processo de integração regional.
O poder constituinte supranacional transcende o poder constituinte tradicional, criando uma ordem jurídica constitucional que reorganiza a estrutura dos Estados aderentes ao direito comunitário e, inclusive, tem a capacidade de submeter as Constituições nacionais a sua autoridade suprema. Além disso, é distinto do ordenamento jurídico interno e do direito internacional, por sua natureza supranacional. Essa distinção é ainda mais evidente quando se observa que os Estados, ao aderirem ao poder constituinte supranacional, delegam parte de sua soberania a um ente autônomo e comum, que pode criar normas que afetam a todos, ao mesmo tempo em que se submetem voluntariamente a uma normatividade externa, ou seja, de “fora para dentro”. Em contraste com o poder constituinte nacional, que é emanação da soberania de um único Estado, o poder constituinte supranacional serve aos povos e Estados, fundamentado em um conceito ampliado de soberania.